terça-feira, 19 de janeiro de 2010

CANÁRIAS A CABO VERDE ( Em Solitário )

10/09/2008 Gran Canária vai ficando para traz. Fico pensando 'Será que não estou indo cedo?". Talvez pudesse ficar mais uns dias! Vi muito, mas ainda ficou muito por ver. Bom, se eu ver tudo de uma vez, não terei desculpas pra voltar. Assim me conformo e sigo meu caminho. Em todos os lugares em que estive, tive o mesmo sentimento. Acho que tudo é muito grande e o tempo é pouco. Com o Entre Pólos abastecido, saio às 9 horas com a grande rizada na segunda forra, vento N de popa, 10 nós. Navego 12 milhas com vento de 17 nós, armação em asa de pombo, e em duas horas o vento passa para NE e mudo de amura: grande a BE, genoa a BB c/spi, trinqueta a BE, vento 15 a 18 nós, velocidade 6.5 nós. Sempre saio rizado, porque depois do abrigo de terra a coisa muda, e de popa tem a trinqueta para suprir a falta de pano do grande. Se não tiver jeito, subo o grande. É extremamente simples fazer esta manobra de rizo no Entre Pólos. Tudo funciona perfeitamente mas, em solitário, prefiro fazer longe de terra. Fiz uma cronometragem para esta faina com 20 nós de vento. Colocar o cinto de segurança, enrolar a genoa, ligar o motor, aproar no vento que aí não é mais 20 nós, acionar o piloto, ir ao mastro, rizar, colocar o barco de volta ao rumo, abrir a genoa, tirar o cinto. Pronto! Quatorze minutos quando tudo está recapitulado para não me enrolar nos cabos nem tropeçar em moitões. Este tempo é normal, sem correria. Trocava de bordo de duas a três vezes ao dia, sempre em asa de pombo. As vezes a coisa mudava cedo demais, cheguei a trocar e mudar tudo em menos de vinte minutos. Em Barcelona comprei um anti-jaibe francês, uma maravilha pra quem está em solitário e não quer surpresa com os violentos jaibes. Custei a pegar o jeito da novidade, mas depois funcionou bem uma barbaridade. Fica um jaibe controlado automaticamente. Muda sozinho de amura, maciamente. Eu só tinha que ir ao mastro para mudar o pau de spi. Na primeira noite tinha muitos navios. Um cruzou bem devagar pela proa. Cheguei a mudar 10 graus no rumo, meio preocupado, pois a velocidade dele era tão baixa que parecia estar parado. É melhor se prevenir. Nas primeiras 24 horas naveguei 136milhas. Bastante velejado e pouco motor. No dia seguinte não foi diferente. Fiz 129 milhas. Os dias passam rapidamente. Faço almoço um dia, e no outro esquento o que sobrou. Às vezes faço alguma experiência culinária com as sobras. Leio bastante, também sempre estou organizando o barco. Escuto música, mas só as de minha preferência! Comprei duas baterias nas Canárias, que resolveram meu problema. Eu queria comprar quatro e trocar todo o banco que estava ruim, pois o preço das baterias aqui é mais barato que no Brasil. Eram inclusive da mesma marca, mas não consegui do tipo selada. Só com tampões. As outras seriam o mesmo preço, mas demoraria uma semana para chegar. As duas estão de bom tamanho pra continuar a viagem para o Brasil. No terceiro dia havia pouco vento, e às vezes nada. Usei mais o motor. Fiz 136 milhas. Dia sem movimento.
Nenhum navio. No quarto dia, mesmo modelo do dia anterior: 130 milhas. Fico três dias sem ver navios ou qualquer movimento, o que por um lado me deixa mais seguro. Até consigo dormir mais. Teve uma noite que ignorei o relógio, confiando só no Zoinho (radar), e por estar a quase 200 milhas da costa da África, dormi três horas seguidas. Que maravilha! No quinto dia ficou melhor pra velejar. O vento não passa dos 14 nós, mas é constante. Velejei bastante. 137 milhas.
No sexto dia o vento apertou um pouco e deu pra velejar o tempo todo. À noite parecia que o mundo ia desabar. Uma enorme nuvem apagou a linda noite de lua 100% cheia. Rizei a grande, recolhi a trinqueta, mas nada mudou.
Assim como a nuvem veio, foi embora, depois de uma meia dúzia de rajadas que não passavam dos 20 nós. Todos os dias aparecem golfinhos para acompanhar o barco. E de manhã, parece que marcam hora. Na saída da Gran Canária uma enorme baleia, que não consegui identificar a espécie, Talvez Orca, passou em rumo contrário ao meu, a mais ou menos dois metros do barco, dando uma enorme baforada. Chegou a me assustar. Peguei a câmera logo, mas só deu pra tirar uma foto da barbatana dela, que já estava distante do barco. Esta última noite, muito bem velejada, naveguei 153 milhas. Agora neste momento em que estou digitando este diário, faltando 50 milhas pra chegar a Cabo Verde, o vento é o que o barco gosta: 18 nós.
Vem de NE, quase de popa, entrando por BE, e com todos panos em cima, inclusive trinqueta. As ondas pequenas e bem compassadas não passam de um metro e meio. Sinto-me muito bem. Sempre estou em contato com minha casa, e isso me ajuda a ficar bem e feliz, pois tudo vai se encaixando e dando certo. Talvez por estar me sentido assim, não vejo o dia passar. É tudo muito rápido! Parece que tem um grande ímã puxando o Entre Pólos pra casa. E ele segue como se estivesse em trilhos. Cheguei às 18h no horário de Cabo Verde, baixando mais duas horas de fuso. A chegada foi complicada e o visual da ilha diferente, sem igual. A impressão não é muito boa perto da marina, antes de entrar nos molhes do porto, o vento apertou. Ondas vem quebrando na popa, com correnteza cada vez a aumentar mais. Eu já sabia que seria assim e por este motivo entrei prevenido e tomei cuidado. Enrolei a genoa, guardei o pau de spi, mas sempre tem aquele susto pra quebrar o gelo. Dentro dos molhes, apesar de muito vento, é tranqüilo. Nas últimas 11 horas fechei as 69.5 milhas que faltavam, num total de 890.5 milhas desde Las Palmas, de Gran Canária até Mindelo, Ilha de São Vicente. Fui até a marina e dois marinheiros me auxiliaram a atracar. Foi meio complicado por causa do vento bem forte, mas deu tudo certo. Fiz a entrada no escritório da marina e comprei acesso à internet Wi-Fi por 7.50 euros (128 MB). Foi caro, mas necessário. Aqui no píer flutuante mexe bastante, mas já estou habituado a dormir navegando, e isto não me incomoda. Mesmo assim acordei várias vezes à noite, talvez porque estou acostumado a acordar pra conferir a navegação. De manhã fui à polícia marítima e à imigração para dar entrada. O povo é muito simpático. O oficial da imigração, quando pedi licença pra entrar, me respondeu em inglês. Falei em português, e ele continuou falando em inglês. Eu disse "Pode falar português. Sou do Brasil". Mas com cabelo branco e olho verde, dá pra confundir! É ninguém é perfeito! Aí quebrei o gelo, e em meia hora de papo, ele me contou toda a história da ilha de São Vicente. Perguntei por que o nome "Cabo Verde". Disse-me o oficial que a situação geográfica da ilha fica a mais ou menos 500 quilômetros de um cabo, na África, com o nome de Cabo Verde. Já quando fiz a mesma pergunta a outras pessoas na marina, ouvi que, quando os portugueses descobriram a ilha, era tudo verde. "É... Isso aqui um dia foi todo verde!". Ilha vulcânica, toda verde?... Vai saber agora qual história levar em conta. A ilha é pobre, mas o povo é simpático e parece feliz. Adoram o Brasil, e dizem orgulhosos, que Cabo Verde é um mini-Brasil. E que aqui tem o segundo melhor carnaval do mundo, só perdendo para o nosso. Aqui tem festival de música e de teatro todos os anos. Falaram-me o nome de todos da MPB que participam do festival, e também dos atores. Nas duas modalidades, só músicos e atores de peso, a nata do Brasil. Fui conhecer um atelier de cerâmica, para comprar lembrança da ilha. O dono, paraplégico e muito falante, foi da marinha portuguesa. Disse que todo o tempo que ele tem, fica na frente da TV, só vendo canais brasileiros, assistindo notícias, e vendo o Brasil. Disse que quando alguma embarcação de pesca se perde e fica à deriva, o povo pra consolar a família preocupada, diz: "Não te preocupa, assim eles vão conhecer o Brasil e depois voltam!". E de vez em quando isso acontece, disse ele. A corrente é generosa e os leva para onde sempre sonharam conhecer.
O Harmattan, vento quente que traz a poeira fina do deserto do Saara, diminui a visibilidade de Dezembro a Fevereiro. Apesar de vir de muito longe, a poeira chega até as ilhas. Felizmente não está soprando este vento e assim não vai infestar o barco de poeira. Mas infelizmente vou perder esta chance única de conhecer isso. Quando eu era criança, havia a brincadeira "Viu o filme poeiras em alto-mar?" O filme, descobri que não existe, mas a poeira no mar, sim. Pretendo sair amanhã, 18/9. Como será proa para o Brasil, a emoção toma conta de mim. O peito aperta, e eu torcendo para aquele ímã me puxar o mais rápido possível pro jardim de casa, a nossa costa linda e saudosa.
To quase lá.
Abraços a todos.
Gigante.